Acórdão nº 03B2757 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Dezembro de 2003

Magistrado ResponsávelARAÚJO BARROS
Data da Resolução18 de Dezembro de 2003
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A "Empresa-A" intentou, na 3ª Vara Cível do Porto, acção ordinária contra AA, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 16.913.921$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

Alegou, para tanto, que: - celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º 00960023, pelo qual assumiu a responsabilidade civil perante terceiros decorrente dos acidentes ocorridos por causa da circulação do veículo automóvel com matrícula SH; - no dia 29 de Janeiro de 1994, ocorreu um acidente de viação, na via Almirante Coutinho, na cidade do Porto, acidente esse em que interveio o dito veículo automóvel, tripulado pelo ora réu AA, sendo certo que foi este último o culpado pela ocorrência do sinistro, do qual resultou o falecimento de um peão atropelado, BB; - pagou a autora, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, aos familiares da vítima e à "Empresa-B", para quem a entidade patronal da vítima havia transferido a sua responsabilidade infortunística, a quantia total de 16.913.921$00; - o condutor do veículo SH, ora réu, circulava sob os efeitos do álcool (taxa de 0,65 g/l), pelo que lhe assiste o direito de regresso previsto no art. 19º, al. c ), do Dec.lei nº 522/85 de 31 de Dezembro.

Citado, contestou o réu invocando, por um lado, a excepção de prescrição do direito invocado pela autora e, por outro, salientando que o álcool por si ingerido nenhuma influência teve no sinistro e na sua eclosão, antes tendo o sinistro ficado a dever-se à velocidade excessiva a que circulava, sendo também certo que a própria vítima teve culpa na ocorrência do dito sinistro, visto encontrar-se numa via onde a circulação de peões é interdita.

Exarado despacho saneador, no qual foi relegada para final a apreciação da excepção de prescrição, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o réu AA a pagar à autora a quantia de 10.447.928$00, acrescida de juros de mora, às taxas legais, sucessivamente em vigor, desde a citação.

Desta sentença apelou o réu, sem êxito embora porquanto, em acórdão de 3 de Fevereiro de 2003, o Tribunal da Relação do Porto, julgando improcedente o recurso, confirmou a decisão impugnada.

Inconformado, interpôs agora o réu recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido.

Em contra-alegações bateu-se a autora pela confirmação do julgado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Findou o recorrente as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil): 1. O acórdão recorrido admite que a gravação da prova tem deficiências técnicas.

  1. Não obstante, entende não ser de dar razão ao recorrente, uma vez que é perceptível o essencial dos depoimentos testemunhais.

  2. O recorrente entende que só na presença da integralidade dos depoimentos testemunhais gravados é que se poderia separar o essencial do acessório. Como tal não aconteceu, não é verdade que a parte só se pode retirar do todo ? 4. Para além do que, expressões como as referidas no acórdão recorrido, "confirmar no essencial", "reter o essencial", levam-nos para o domínio da subjectividade, quando o direito se deve nortear precisamente pelo contrário.

  3. A nulidade invocada pelo recorrente não se encontra sanada pois, tendo o tribunal conhecimento das referidas deficiências técnicas da prova gravada, seja em que altura for e porque meio, fica obrigado a providenciar pela repetição da prova de forma a que a decisão judicial seja o mais harmónica possível com a realidade.

  4. Violou, assim, o acórdão o disposto no art. 9º, do Dec.lei nº 39/95, de 15/02 e o art. 660º, nº 2, parte final, do C.P.Civil.

  5. A alegação do tribunal recorrido de que a fundamentação das respostas não se baseia só no teor da sentença penal condenatória, como no depoimento dessas mesmas testemunhas vem, como parece óbvio, reforçar ainda, mais, a posição do recorrente que atrás se explanou.

  6. De acordo com a jurisprudência dominante a alínea c) do art. 19º do Dec.lei nº 522/85, de 31/12, exige a verificação de dois requisitos cumulativos: por um lado, devia a recorrida ter provado que o recorrente, no momento da verificação do acidente, conduzia com uma taxa de alcoolémia superior ao máximo legal permitido, para além da questão do nexo de causalidade, com orientação jurisprudencial já fixada pelo Ac. STJ de 25/05/2002.

  7. No entanto, dos autos resulta claro que o recorrente apenas efectuou o exame que detectou a presença de álcool no sangue de 0,65 g/l, duas horas após o acidente.

  8. O exame para medição do álcool no sangue é um exame pericial, ao qual o julgador não pode aplicar o princípio da livre apreciação da prova (por se tratar de prova legal, "taxada", científica e sujeita a contra-prova).

  9. Como resulta dos autos de forma clara e inequívoca, não foi efectuado qualquer exame pericial ao recorrente no momento do acidente sendo este o único legalmente possível para a detecção do álcool pelo que não está preenchido o primeiro dos requisitos referidos na conclusão 8.

  10. Tal matéria deve ser pois alterada, podendo-o ser por este Tribunal, nos termos do disposto nos arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2 do C.P.Civil, até porque a sentença não faz referência a qualquer presunção obrigatória de origem estradal.

  11. A infracção imputada ao recorrente de condução sob influência do álcool foi amnistiada.

  12. A propósito do pedido de reembolso das quantias pagas pela autora à seguradora laboral importa dizer que o prazo de prescrição não é o referido na sentença confirmada e consignado nos nºs 2 ou 3 do art. 498º do C. Civil.

  13. Em matéria de acidente de viação que possa considerar-se simultaneamente como acidente de trabalho, para efeitos de prescrição na acção a intentar pela seguradora de acidente de trabalho contra os responsáveis pelo acidente de viação, é aplicável o dispositivo do nº 1 do artigo atrás referido e não o seu nº 2.

  14. A tal não é alheia a qualificação jurídica do direito da seguradora laboral, que não é um direito de regresso, mas antes um direito de indemnização contra terceiro, baseado na consideração de ser este o responsável principal ou primário dentro do fenómeno da sub-rogação.

  15. A jurisprudência mais recente vai mais longe, Ac. STJ de 24/01/2002, no Proc. 4056/01 da 1ª secção, quando refere que "caracterizado o acidente de viação como de trabalho, tendo a seguradora do acidente de viação, na acção que lhe moveu a vítima pago a esta última a indemnização respectiva, na sequência de transacção homologada judicialmente e transitada em julgado, não está aquela seguradora obrigada a reembolsar a seguradora de acidente de trabalho pelos montantes que pagou à vítima, pela sua segurada, no cumprimento das suas obrigações contratuais".

  16. Refere a sentença, a fls. 387, último parágrafo, que não foi dirigida contra a autora acção judicial para ressarcimento dos danos patrimoniais. Não percebe o recorrente a que propósito tal haveria de acontecer, quando é referido no parágrafo imediatamente anterior, "que os familiares optaram quanto a estes danos pela indemnização laboral". É pacífico na jurisprudência e doutrina não se tratarem de indemnização cumuláveis.

  17. Quanto à questão do prazo de um ano referido na Base XXXVII da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, é referido na sentença, a fls. 387, 2º parágrafo, a propósito do Ac. RC de 19/06/2001, a expressão "inédito"; efectivamente trata-se, à data da contestação do ora recorrente, duma questão pouco debatida nos nossos tribunais.

  18. Como o recorrente não foi, nem tinha que ser notificado do pedido de indemnização cível, ao contrário da recorrida, pelo que tem em seu poder documento cuja junção aos presentes autos se requereu, nos termos dos artigos 524º e 528º, parte final ambos do CPC, para prova de que pedido de indemnização contra ela deduzido, foi-o antes de decorrido o prazo de um ano referido na contestação do réu, a fls. 88, artigo 14º, facto que não veio a acontecer, mas por razão não imputável ao recorrente.

  19. Salvo o devido respeito por melhor opinião, um exame pericial detectando a presença de 0,65 g/l de álcool no sangue do recorrente, efectuado duas horas após o acidente, não é bastante para se concluir que este no momento do acidente agia sob a influência do álcool.

  20. Estamos na presença de causas múltiplas, nomeadamente a velocidade excessiva e o cansaço do recorrente (vide fls. 389 dos autos, resposta ao quesito 2º da base instrutória), sendo que nenhuma delas resultou provada como sendo consequência do grau de alcoolémia que o recorrente eventualmente teria no momento do acidente mas o qual não foi avaliado seja por recurso a exame pericial ou sequer se aplicou qualquer presunção obrigatória estradal, sendo que aquelas causas fazem parte do objecto do contrato de seguro em causa nos autos pelo que a recorrida, em qualquer dos casos, teria de assumir a responsabilidade pelas respectivas consequências.

  21. Depois, está-se também na presença de uma transgressão do malogrado peão, conforme se depreende de fls. 27 e 28, ambas verso, dos autos e que foi concausal do mesmo, por violação ao disposto no art. 72.º do C.E., transgressão esta que ficou esquecida na sentença confirmada, pois no que concerne a esta questão não levou em conta o trânsito em julgado do acórdão criminal, violando assim, o disposto no art. 3º-A, do C.P.Civil.

  22. Ao provar que o acidente se ficou a dever também a outras causas que não o álcool e à conduta contravencional da malograda vítima, deduziu o recorrente excepções à presunção legal de culpa e provou-as pelo que, se não se entender que impedem o direito de regresso da seguradora na sua totalidade, não podem...

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