Acórdão nº 0677/03 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 14 de Abril de 2005

Magistrado ResponsávelFREITAS CARVALHO
Data da Resolução14 de Abril de 2005
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo A..., B... e C..., todos identificados nos autos, recorrem da sentença de 29-10-2002, do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, que julgou improcedente a acção ordinária, para efectivação da responsabilidade civil extracontratual, que haviam interposto contra os Hospitais da Universidade de Coimbra, pelos danos sofridos pela primeira autora em consequência dos tratamentos médicos que lhe foram ministrados no referido estabelecimento hospitalar.

  1. A sentença recorrida, considerando não provado o nexo de causalidade entre os factos e o dano, absolveu o R. do pedido.

    As recorrentes nas suas alegações formulam as conclusões seguintes : 1 - O doente, antes de qualquer intervenção cirúrgica, tem de ser informado e esclarecido sobre o método ou processo cirúrgico a utilizar, alternativa de tratamento, riscos potenciais e consequências pós-operatórias.

    2 - O dever de obter o consentimento radica num direito imanente à personalidade humana e tem dignidade constitucional.

    3 - Tal consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento.

    4 - Incumbe ao médico alegar e demonstrar que obteve o consentimento.

    5 - Os HUC não alegaram nem demonstraram que tivessem cumprido o dever de esclarecimento da A....

    6 - A ineficácia ou invalidade do consentimento, como resultado da insuficiência da informação, são requisitos autónomos da indemnização, ainda que não fique demonstrado o nexo de causalidade entre o acto médico e as lesões.

    7 - Ora o consentimento dado pela A... no documento por ela assinado em 11 de Julho de 1994 é invalido e ineficaz, porquanto assinou de cruz, antes mesmo de ser submetida aos exames complementares de diagnóstico.

    8 - Acresce que o esclarecimento deve ser prestado pelo médico que dirige a intervenção cirúrgica e não por qualquer outro.

    9 - O documento, que os HUC colocaram à frente da A... no dia de internamento (11.07.94) para ela assinar, não reúne os requisitos necessários a um consentimento esclarecido e livre pois se trata de um formulário vago, rígido, falacioso e unilateral, entregue no próprio dia do internamento sem que o doente (neste caso a A...) tivesse sido previamente esclarecido e informado.

    10 - A sentença recorrida violou, entre outras, as disposições dos artigos 25º da CRP, 70º do Código Civil, 159º do Código Penal, Base XIV da Lei de Bases de Saúde (Lei Nº 48/90, de 21 de Agosto) e 38º 39º e 40º do Código Deontológico dos Médicos.

    11 - É de natureza extra-contratual a responsabilidade civil resultante de actos médicos praticados em hospitais públicos.

    12 - Considerando ser difícil a prova da negligência médica porque de um lado está um especialista (o médico) e do outro um não especialista (o doente), é preferível a tese a presunção da culpa por parte dos titulares dos órgãos da administração, seus funcionários ou agentes.

    13 - Também não repugna aceitar que, dada tal dificuldade, recaia sobre o médico o ónus da prova do nexo de causalidade por ele estar em melhores condições para alegar e demonstrar que utilizou todos os processos necessários à prestação dos melhores cuidados possíveis e à utilização das melhores técnicas (leges artis).

    14 - No caso da A... (através do processo clínico) está suficientemente demonstrado o nexo de causalidade entre a 1ª intervenção cirúrgica, realizada em 15.07.94, e as lesões cerebrais irreversíveis.

    15- Segundo o documento de fls. 76 do vol. IV do processo clínico, a A... foi submetida a colecistectomia laparascópica, da qual resultou uma inflamação na cavidade peritonial e uma infecção, responsável pelo surgimento do estado de sépsis, do qual adveio à recorrente uma paragem cárdio-respiratória e, finalmente, a encefalopatia anóxica.

    16 - Das testemunhas "médicos" ouvidas em Juízo, apenas o cirurgião ... teve intervenção directa na operação à vesícula do dia 15.07.94 e nenhum dos restantes médicos (incluindo os da Cirurgia I) teve a mais pequena participação.

    17 - A falta de intervenção directa e de acompanhamento pós operatório induz à conclusão de que emitiram opiniões de natureza puramente académica e abstracta.

    18 - Também o parecer da Ordem dos médicos peca por defeito ao basear-se apenas na documentação remetida pelo TAC, sem ser acompanhado de todo o processo clínico da A....

    19 - A aceitar-se como plausível a tese defendida pelo especialista dr. ..., a causa da síncope residiu numa embolsa pulmonar, resultante da circulação de um coágulo ou êmbolo que se desprendeu por efeito da repermeabilização do catéter central.

    20 - Como não existe nos autos nenhum exame radiográfico feito à A... no dia 25.07.94, concluiu-se que os HUC ou não o fizeram como o deviam) ou o mesmo foi facultado, naturalmente por não ser conveniente que o fosse.

    Em qualquer dos casos a negligência dos HUC.

    21 - De todo o modo podemos concluir com toda a certeza que se a 1ª intervenção, em 15.07.94, tivesse corrido bem (e não correu, como foi admitido pacificamente por todas, incluindo o próprio cirurgião chefe), a A... não teria tido qualquer paragem cárdio-respiratória.

    22 - O Tribunal a quo , ao não recolher os conhecimentos e as explicações técnicos do Prof. ... (médico especialista na área da cirurgia), tal como lhe fora solicitado, violou o disposto no artigo 649 do C.P. Civil) e praticou omissão de pronúncia, segundo o artigo 668º, nº 1, alínea d), daí resultando a nulidade da sentença recorrida.

    23 - No domínio da responsabilidade médica, presume-se a culpa do médico, recaindo sobre os HUC o ónus da prova de que o seu funcionário actuou com diligência, zelo e cuidado.

    24 - Se o médico interveniente é um especialista (como é o caso do dr. ...) exige-se um maior número de conhecimentos e de experiência da técnica utilizada.

    25 - Em meados de 1994, o recurso à técnica da laparoscópia era ainda um processo embrionário (pois fora introduzido em Portugal em finais de 1991) e, enquanto tal, perigoso e cheio de riscos tanto pela natureza como pelos meios utilizados (artigo 492º, nº 2, do Código Civil).

    26 - Em Julho de 1994, ou seja, passados pouco mais de 2 anos de utilização, em Portugal, da laparoscopia, o método era ainda pouco experimentado, impondo-se ao cirurgião especiais cuidados diligência (sabe-se que um juiz ou um advogado com dois anos e meio de prática não pode ser considerado experiente).

    27 - Sendo a A... jovem e saudável e não revelando os exames pré-operatórios quaisquer anomalias, nomeadamente, ao nível do sistema cardíaco, a operação seria benigna e banal.

    28 - O recurso, permitido por lei, à prova da primeira aparência ou prima-facie, releva que houve negligência médica.

    29 - A ocorrência de um dano extraordinário ou anormalmente desproporcionado como resultado de um acto cirúrgico que, em princípio, seria fácil e sem complicações induz à conclusão de que há relação de causa- efeito entre o acto e os danos verificados.

    30 - Também o recurso às presunções judiciais ou da experiência (a res ipsa loquitur) conduz à condenação dos HUC na obrigação de indemnização nos casos em que, não se provando embora negligencia médica, o resultado para o doente é desproporcionado e grave.

    31 - Por experiência e segundo a ciência médica, quando um paciente é acometido de síncope com paragem cardíaca tem de ser socorrido num espaço de 4/5 minutos para se evitarem lesões cerebrais da gravidade das que sofreu a A....

    32 - Provando-se que o pessoal dos HUC levou mais de 4/5 minutos a socorrer a A..., entre o início dos sintomas da síncope e a ventilação artificial, estaria encontrada a negligência dos HUC e a obrigação de indemnizar.

    33 - Segundo os artigos 349º e 351º do Código Civil, a presunção pressupõe a existência de um facto conhecido que constitui a sua base e, uma vez provado, extrai-se a prova do facto presumido.

    34 - Os Autores alegaram e demonstraram os factos-base da presunção judicial, quais sejam, a síncope com paragem cardíaca e a encefalopatia anóxica.

    35 - O facto presumido consiste em que foi ultrapassado o tempo limite de 4/5 minutos pelo pessoal dos HUC na prestação de cuidados à A..., nomeadamente a ventilação artificial, capaz de evitar a morte de células cerebrais.

    36 - A responsabilidade dos HUC radica aqui na chamada "faute de service" ou culpa de serviço e na omissão do dever de vigilância (culpa in vigilando, culpa in eligendo).

    37 - O presidente do tribunal a quo deveria ter ampliado a matéria da base instrutória por forma a introduzir um quesito que abordasse a questão do tempo.

    38 - O STA, enquanto tribunal de recurso com poderes de apreciação da matéria de facto, deve anular, mesmo oficiosamente, a decisão da 1ª instância, quando considere indispensável (como é o caso dos autos) essa ampliação.

    39 - A decisão recorrida violou entre outras, as disposições dos artigos 483º, 493º, nº 2, 349º e 351º, do Código Civil, e 650º, nº1, alínea f) do C.P.Civil.

    40 - Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, requerem os Autores que a decisão recorrida seja revogada, declarando-se procedente por provada a acção intentada contra os HUC.

    41 - Caso assim não for entendido, deverá o STA declarar NULA a decisão de 1ª instância, por forma a que seja ampliada a matéria de facto, nos termos supra referidos.

    A entidade recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido, sustentando, em síntese, que, como consta da especificação, a A. A... deu o seu consentimento para a intervenção cirúrgica a que foi submetida, não se tendo provado que tal consentimento não foi esclarecido, que da factualidade não resultaram os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente a prova, a cargo dos autores, do nexo de causalidade entre o facto e o dano, e o facto de nas alegações as recorrentes virem a atribuir as lesões à falta de assistência médica imediata na altura em que a A. A... foi acometida da sincope...

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