Acórdão nº 1347/04.2TBPNF.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 24 de Maio de 2011

Magistrado ResponsávelHELDER ROQUE
Data da Resolução24 de Maio de 2011
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: AA propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra o “Hospital ...... - Vale do Sousa” (Centro ..........., E.P.E.), BB e “S........... Ld.ª”, com sede em Vila Nova de Famalicão, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de €175.000,00, acrescida de juros legais, desde a citação e até integral cumprimento, invocando, para tanto, em síntese, que, em virtude de errado diagnóstico, efectuado no dia 18 de Agosto de 2002, no réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, por parte do réu BB, que aí prestava serviço como médico, e da consequente errada prescrição e tratamento, o autor sofreu vários danos, irreparáveis e irreversíveis, no caso, a perda do testículo esquerdo, o que lhe causou ainda outros prejuízos, sendo que, por todos, quer ser ressarcido, computando a indemnização a que se julga com direito, no quantitativo de €1.700.000,00.

Mais alega que a responsabilidade da ré “S........... Ld.ª” advém do facto de ter indicado e cedido ao réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, no âmbito de um contrato de fornecimento de pessoal médico que tinha com este celebrado, os serviços do réu BB.

Todos os réus contestaram, concluindo pela improcedência da acção, tendo o réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, invocado, no essencial, desconhecer os factos alegados pelo autor e impugnado que o mesmo apresente qualquer incapacidade para o normal desenvolvimento da actividade sexual e para viabilizar a reprodução humana, alegando ainda que o réu médico que assistiu o autor gozava de absoluta liberdade de diagnóstico e de prescrição, tendo agido de acordo com os procedimentos comuns, ou seja, com as “legis artis” da medicina.

A ré “S........... Ld.ª” invoca a sua ilegitimidade, pois, não obstante aceitar que, à data dos factos, existia um contrato de prestação de serviços, por via do qual cedeu os serviços médicos prestados pelo co-réu BB ao “Hospital ...... - Vale do Sousa”, não exercia qualquer autoridade, direcção ou fiscalização sobre a actividade médica prestada pelo réu BB, mas, mesmo que assim se não entenda, nunca seria responsável pelo pagamento de qualquer indemnização ao autor, já que havia transferido a responsabilidade civil que lhe pudesse advir pelos actos praticados pelo referido médico, para a “Companhia de Seguros Tranquilidade”, por contrato de seguro, válido e vigente, à data dos factos, com a apólice nº 00000.

Mais alega a ré que, em 1 de Julho de 2002, foi celebrado entre o réu “Hospital ...... - Vale do Sousa” e ela própria um contrato de prestação de serviços, em que esta se comprometia a disponibilizar 336 horas de trabalho médico, em benefício daquele Hospital, a prestar por médicos ao seu serviço, trabalho esse exercido, “sob orientação hierárquica e direcção técnica” do co-réu Hospital, impugnando ainda, por desconhecimento, os demais factos invocados pelo autor.

O réu BB veio, também, invocar a sua ilegitimidade, nos mesmos termos que o tinha feito a ré “S........... Ld.ª” e impugnou a versão dos factos apresentada pelo autor na petição inicial.

Admitida a intervenção principal provocada da “Companhia de Seguros Tranquilidade SA”, com sede em Lisboa, requerida pelo autor, a mesma contestou, terminando com o pedido da improcedência da acção e, em consequência, com a sua absolvição do pedido, alegando, para o efeito, em suma, que nunca foi emitida qualquer apólice que titulasse um qualquer contrato de seguro celebrado entre a chamada e a ré “S........... Ld.ª”, para além de que se encontra prescrito, em relação a si, o direito que o autor pretende fazer valer, por via da presente acção, já que entre a data da sua citação e a data dos factos, decorreram mais de três anos, impugnando, quanto ao mais, por remissão para as contestações dos restantes réus, os factos vertidos na petição inicial.

Na réplica, o autor defende a legitimidade dos réus BB e “S........... Ld.ª”, e bem assim como a inexistência da prescrição do seu direito contra a seguradora interveniente.

No despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, arguida pelos réus “S........... Ld.ª e BB, tendo sido relegado para sede de sentença final o conhecimento da excepção peremptória da prescrição.

A sentença julgou a acção, totalmente, improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu todos os réus do pedido formulado pelo autor.

Desta sentença, o autor interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação, totalmente, improcedente e, em consequência, confirmou a decisão impugnada.

Do acórdão da Relação do Porto, o autor interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, integralmente: 1ª – O autor, um jovem, foi assistido no Hospital ...... por um médico de clínica geral que, após 4 horas de espera pelas análises feitas, e apenas com base na observação directa e na apalpação, em parte porque o Hospital não possuía os instrumentos tecnológicos de diagnóstico adequados ao caso, e noutra parte porque não se enviou o doente para um Hospital Central do Porto, em ordem a ser visto por um urologista, lhe diagnosticou uma epididimíte, doença de que não padecia, antes sim torção testicular. Em resultado deste errado diagnóstico, o autor ficou para o resto da sua vida sem o testículo esquerdo, sofrendo de vários danos. O douto acórdão recorrido entendeu que a prova produzida era insuficiente para condenar os réus, ficando deste modo o autor, vítima inocente de uma situação, pelos vistos, sem responsável, impedido de ser justa e legitimamente ressarcido pelo dano sofrido.

  1. - Cremos, mal andaram as instâncias ao fixarem a factualidade apurada, no que ao diagnóstico e tratamento respeita, matéria nuclear no presente pleito, com base em depoimento de médicos que não foram testemunhas dos factos sobre que se pronunciaram, quando na verdade, e em rigor, não podem ser considerados testemunhas. Foi com fundamento nesses depoimentos que se veio a fixar a matéria que determinou a improcedência da acção, por um erro, pois, de qualificação jurídica dos depoimentos prestados, em razão de ciência.

  2. - Foi isso, que constitui um elemento essencial a ter em conta para se poder apreciar correctamente este litígio, que o autor defendeu quando considerou que certas pessoas ouvidas como testemunhas, designadamente os médicos arrolados pelos réus, a propósito da matéria primordial da lide o não poderiam substancialmente ser, em concreto, e não em abstracto. Pois quem não presenciou, não viu o doente, não falou com ele, não o conhece ou só ouviu falar do caso dias ou meses depois da ocorrência dos factos, não se pode arvorar em testemunha destes.

  3. - Sublinhe-se: não está em causa a definição de testemunha na sua capacidade genérica em abstracto, conforme decorre dos artigos 616°, 617° e 618°, do CPC. Nesse sentido meramente formal, todas as pessoas ouvidas cumpriam os requisitos legais, sem dúvida. O que está em causa é a razão de ciência, do conhecimento efectivo que tinham ou não, que podiam ter ou não, da matéria essencial e controvertida na presente lide.

  4. - Assim, o que está em causa é tão só entender que a matéria de facto fixada nas instâncias, a que deve aplicar-se o regime jurídico adequado, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 729°, do CPC, deve ser lida à luz de que apesar de terem sido ouvidos vários médicos sobre a situação clínica do autor, o certo é que a matéria de facto fixada ilude ou omite aspectos centrais para a correcta compreensão do que efectivamente se passou.

  5. - Com efeito, o réu Dr. BB foi claro ao admitir que medicou o doente na convicção de que o mesmo sofria de epididimite, e, por isso, medicou-o com um anti-inflamatório e um antibiótico, ainda que a audição do seu depoimento revele, de um modo ao menos implícito, que admite ter-se enganado no diagnóstico, haja em vista a inexistência no hospital, naquele tempo, dos instrumentos tecnológicos auxiliares de diagnóstico, bem como da inexistência do serviço de urologia.

  6. - Por sua vez, o médico que operou o doente, especialista na matéria, sustentou de modo absolutamente convicto, que o autor não sofreu de epididimite, mas sim de torção testicular, e que foi por causa desta doença que veio a perder irreversivelmente o testículo esquerdo. O tribunal só não apurou o facto porque desvalorizou o depoimento do médico, considerando incrivelmente que nesta parte não tinha sido isento, e baseando a sua convicção no depoimento dos médicos indicados pelos réus, não especialistas e que não assistiram o autor, e cujo depoimento, naturalmente, visou isentar de responsabilidades a entidade, 1o réu, para a qual trabalham.

  7. - De resto, diga-se, conforme consta do douto acórdão recorrido, por diversas vezes, e julgamos sem razão, são feitas menções despropositadas e infundadas à isenção dos depoimentos das testemunhas indicadas pelo autor, valorizando-se os depoimentos das testemunhas da parte contrária, sem que exista fundamento para tais juízos, objectivamente discriminatórios. Logo aqui, nestes autos, em que o autor é a única vítima inocente de mais um erro médico, ainda que sem dolo, sofrendo danos significativos, que podem ficar sem reparação alguma, e numa acção judicial que consabidamente, pela doutrina e jurisprudência, é de prova assaz difícil, próxima de uma prova diabólica.

  8. - O douto acórdão recorrido manifesta por diversas vezes que a construção da motivação na fixação da matéria de facto se fez na base de pressupostos subjectivos, com um olhar crítico negativo sobre as pretensões formuladas pelo autor. Isso é designadamente patente na forma como são produzidos juízos de valor negativos, do seguinte teor: - A página 12 do acórdão, o raciocínio do autor, apelante e ora recorrente, é qualificado como faccioso; - A página 17 do acórdão, e a propósito da fixação da hora a...

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