Acórdão nº 760/04 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 04 de Maio de 2004

Magistrado ResponsávelDR. RUI BARREIROS
Data da Resolução04 de Maio de 2004
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – Relatório.

...

Pediu a condenação dos réus a pagarem-lhe «a quantia de € 1.257.078,72, acrescida dos respectivos juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento».

Para o efeito, alegou que se dedica a determinada actividade industrial e comercial e que vendeu e entregou à primeira ré diversa mercadoria referente à sua actividade comercial: «no âmbito e no exercício da sua actividade, a Autora vendeu e entregou à Ré, diversa mercadoria referente à sua actividade comercial». Alegou ainda a existência de letras que não foram liquidadas nas datas do vencimento e que tinha um saldo credor de € 888.061,52, conforme extracto de conta corrente que juntou.

2. Os réus contestaram, alegando que a P.i. não contém os factos necessários para justificar o pedido, por não ser alegado concretamente que mercadoria foi fornecida, quando foi fornecida, que letras foram aceites, quando se venciam, quando não foram liquidadas, que encargos originaram, que despesas de imposto de selo ocorreram, por que razão tais encargos e despesas são a cargo dos réus, limitando-se a autora a alegar factos conclusivos. Em consequência, pedem que a acção seja desde julgada improcedente já no despacho saneador.

3. Depois da Réplica, em que os autores se opuseram a esta pretensão, foi proferido despacho saneador, o qual julgou a petição inepta por ininteligibilidade da causa de pedir, e, consequentemente, absolveu os réus da instância, nos termos dos artigos 288º e 494º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC).

4. Deste despacho, recorreu a autora, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte: «...

  1. Tendo em conta os factos alegados na petição Inicial e na Réplica, o Meretº Juiz deveria concluir que a matéria de facto alegada não contém qualquer imprecisão ou insuficiência; 3º Até porque, basta uma leitura atenta da contestação para concluir que os ora Agravados compreenderam perfeitamente o pedido e a causa de pedir formulados pela Agravante; 4º mesmo que assim não se entenda, deveria a ora Agravante ter sido notificada para corrigir a Petição Inicial, concedendo-se-lhe um prazo para esse efeito.

    ...

    II – Fundamentação.

    ...

    7.

    O Direito.

    O objecto do recurso é o de saber se é inepta, por ininteligibilidade da causa de pedir, uma petição inicial em que o autor alega que fez fornecimentos de mercadorias à primeira Ré, sem especificar que concretos produtos que forneceu, em que datas e por que preço, limitando-se a remeter para uma “conta corrente”.

    Não sendo inepta, se a acção deve prosseguir ou se se deve convidar a autora a completar e/ou corrigir a Petição inicial (P.i.).

    7.1. Consta do despacho recorrido que a autora, para sustentar o seu pedido alegou «que fez fornecimentos de mercadorias à primeira Ré - sem contudo especificar que concretos produtos forneceu, em que datas e por que preço -, tendo a primeira Ré aceite diversas letras que não foram liquidadas nas datas do seu vencimento; e que, conforme extracto de “conta corrente” junto, o saldo é a favor da Autora no montante de € 888.061,52». Seguidamente, de acordo com o princípio da substanciação, defende-se que é necessário alegar «uma determinada e concreta causa de pedir», o que a autora não terá feito, visto que se limitou a «alegar que vendeu à primeira Ré diversas mercadorias», o que «não preenche o conceito de uma concreta causa de pedir», não sendo suficiente que alegue «genericamente que vendeu mercadorias à primeira Ré, não concretizando que mercadorias foram essas, quando cada um dos fornecimentos teve lugar, qual o preço acordado para cada um deles e qual a data de vencimento da obrigação de pagamento do preço para cada um deles (pois de outra forma não se pode controlar o cálculo de juros vencidos efectuado pela Autora), razão pela qual não se pode considerar preenchida, por esta alegação genérica, a noção de causa de pedir, sendo certo que era à Autora quem cabia o ónus de articular factos que consubstanciassem uma concreta causa de pedir».

    E, na perspectiva do mesmo despacho, era necessário fazê-lo, pois: 1º) não foram alegados factos que traduzam a «ocorrência da vida real, concreta e especificada», sendo ao demandante que «compete alegar os factos de cuja prova ...», «expor com clareza dos fundamentos da acção».

  2. ) «Com tal exigência de concretização dos factos reais que fundamentam o pedido, pretende-se antes de mais assegurar que a decisão de mérito que deles conheça não se venha a repetir ou a ser contrariada numa outra acção - limites objectivos do caso julgado».

  3. ) e «também assegurar um efectivo e leal contraditório, impondo-se que ao demandado seja dado a conhecer exactamente quais os factos que suportam a pretensão deduzida contra si por modo a que este possa construir a sua defesa».

    O referido despacho invocou a seu favor o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12 de Abril de 1984, o Desembargador A. Abrantes Geraldes [1] e o Acórdão da Relação de Évora de 5 de Dezembro de 1996 [2].

    7.2. O recorrente cita diversos Acórdãos em que se decidiu que não havia ineptidão da petição inicial em situações iguais à deste processo.

    No despacho de sustentação nada se referiu quanto ao que foi alegado pelo recorrente.

    7.3. Não oferecerá muitas dúvidas de que a petição inicial constante deste processo não respeita, correctamente, todos requisitos fixados na lei.

    Mas, desta afirmação à que chega à existência de ineptidão, vai distância que implica diferença do ponto de vista jurídico.

    Conforme ensina Anselmo de Castro, com a ineptidão da petição inicial, «visa-se, em primeiro lugar evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar correctamente a causa, decidindo sobre o mérito» [3]. É uma situação que vai para além da que nos ocupa: entende-se o que se pretende, é possível discutir as questões entre as partes, mas faltam elementos para poder chegar ao fim com tudo perfeitamente definido; «mas ... daí para cima», como se exprime Alberto dos Reis, são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição» [4]. Por isso Manuel de Andrade diz que só é ineptidão «a falta absoluta da respectiva indicação» (do pedido e/ou causa de pedir), não o sendo a deficiência ou insuficiência dessa indicação. E Castro Mendes diz que, na alínea a), do nº 1, do artigo 193º, do CPC se prevê «o caso extremo de não ser de todo indicado o pedido e a causa de pedir» [5].

    Numa primeira análise, parece que a petição inicial deste processo, deficientemente articulada, não é inepta.

    7.4. Mas, é necessário aprofundar melhor as coisas, porque assim tratadas, por enunciados gerais, pode levar-nos a resultados enganosos.

    Aliás, a questão não é fácil, basta ver a divergência entre Alberto dos Reis e o Director da Revista dos Tribunais [6], a propósito da decisão do Acórdão da Relação do Porto, de 30 de Novembro de 1927, que julgou inepta a petição «em que se pede determinada importância a título de preço de fazendas vendidas, sem se indicar a qualidade e natureza das fazendas, a data dos fornecimentos e as outras circunstâncias necessárias para se conhecer a operação realizada» [7]. Este criticou a decisão [8], aquele considerou-a acertada: «a causa de pedir não estava definida, desde que o autor se limitara a alegar que a quantia pedida representava o preço de venda das fazendas; ficava-se em face dum contrato abstracto e indefinido de vendas, e o que importava conhecer era o contrato concreto e positivo que realizara» [9]. E, na obra citada, Alberto dos Reis já tinha referido o Acórdão do STJ, de 18 de Agosto de 1905 que considerou inepta a petição em que «o autor se inculca credor do réu por determinada quantia proveniente de transacções, sem se indicar a qualidade, natureza, data e cláusulas das transacções» [10]. Para além da divergência entre os referidos Autores, também Castro Mendes defende que quando o...

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