Acórdão nº 03B019 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Setembro de 2003 (caso NULL)

Magistrado ResponsávelLUCAS COELHO
Data da Resolução18 de Setembro de 2003
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: ID. A, farmacêutica, propôs em 16 de Março de 2000, no 1º juízo do tribunal de Vila Verde, contra B, arquitecto, acção ordinária tendente ao cumprimento e indemnização por incumprimento de contrato de prestação de serviço, na modalidade de empreitada, entre ambos celebrado a 5 de Maio de 1997. Pede correspondentemente (1): a condenação do réu a concluir nos termos contratuais a habitação, composta de cave, rés-do-chão e andar, objecto do negócio; em alternativa a condenação do mesmo a entregar-lhe a quantia, não inferior a 7.000.000$00, necessária a essa ultimação, ou o montante que a exceda, a liquidar em execução de sentença; e, cumulativamente, ainda a sua condenação a indemnizá-la pelos prejuízos emergentes do não cumprimento pontual do contrato, também a liquidar em execução. Contestando, deduziu o réu reconvenção pelo preço global dos seus serviços - retribuição e despesas indispensáveis -, nos termos do contrato, suas alterações e incumprimento, a liquidar em execução. O processo prosseguiu a normal tramitação, vindo a ser proferida sentença final, em 26 de Fevereiro de 2002, que julgou parcialmente procedente a acção - improcedendo a reconvenção -, com a consequente condenação do réu a concluir a obra contratual e a pagar à autora uma indemnização, «a título do que se refere na resposta ao quesito 14.º» - lê-se na decisão -, no montante que se vier a liquidar em execução. O réu apelou da sentença, mas sem sucesso posto que a Relação de Guimarães a confirmou, com diversa fundamentação. Do respectivo acórdão, proferido em 10 de Julho de 2002, vem interposta a presente revista, cujo objecto se restringe à qualificação jurídica do contrato na perspectiva do seu incumprimento. II1. A Relação considerou assente a matéria de facto já apurada na 1ª instância, para a qual, não alterada nem impugnada, desde já se remete nos termos do nº. 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das pertinentes alusões, maxime ao teor da contrato. 1.1. Com esses fundamentos factuais, à luz do direito aplicável, a sentença do tribunal de Vila Verde, divergindo da qualificação apresentada pela autora na petição, veio a caracterizar o negócio ajuizado como contrato de mandato, «um puro contrato de mandato, ainda que complexo, compreendendo diversas obrigações, designadamente por banda do mandatário». E «todas essas obrigações podendo reconduzir-se à noção de 'actos jurídicos por conta de outrem'» emergente do artigo 1157º do Código Civil, não se suscitaram dúvidas ao julgador em 1.ª instância de que «o Réu agia 'por conta' da Autora, sua co-contratante, isto é, na gestão de um interesse desta, prefigurando actos que a mandante lhe havia cometido, a ele, Réu». Ora, nos termos de um semelhante negócio jurídico, «o mandatário ora Réu - pondera a sentença - encontrava-se sujeito às obrigações a que alude o artº. 1161º C. Civ., designadamente a praticar todos os actos que o mandato englobava». Provou-se, todavia, a propósito, «que se encontram por efectuar diversas obras no imóvel a que alude o contrato», traduzindo incumprimento parcial do mesmo, aliás imputável ao réu que, onerado neste ponto com uma presunção de culpa (artigo 799º, nº. 1), não a logrou ilidir. Daí que tenha sido condenado «a concluir sem vícios a obra referida na acção, designadamente fazendo todos os trabalhos em falta de execução ainda possível», e ademais a pagar à autora - que solvera, por seu turno, integralmente o preço contratado, observe-se em aparte (cfr. as respostas aos quesitos 6º, 10º e 63º) - «uma indemnização no montante que se vier a liquidar em execução de sentença» pelos danos resultantes do incumprimento. 1.2. Declaradamente com fundamento diverso, e desenvolvendo nesse conspecto uma certa elaboração em torno da figura do mandato sem representação, a Relação de Guimarães confirmou como se disse a sentença. 2. E o réu vem a este Supremo Tribunal dissentir do decidido, sintetizando a alegação da revista nas conclusões que literalmente se reproduzem: 2.1. «A A., que é farmacêutica e proprietária de um terreno situado em Vila Verde, demanda o Réu, que é arquitecto, alegando que celebrou com ele um contrato de empreitada tendente à construção de uma habitação que o R., alegadamente não cumpriu, e pede a condenação deste a completar a obra e indemnizá-la»; 2.2. «Demonstrou-se contudo que A. e R. celebraram antes um contrato de mandato - na modalidade de mandato sem representação, por escrito, de 9/5/1997, através do qual, em consequência, o Réu se obrigou a praticar actos jurídicos por conta da A. tal como prescrito pelo artº. 1157º do Código Civil (a saber: 'fiscalizar a construção' (cláusula 1.a); garantir que ela seria entregue concluída no prazo de 16 meses (cláusula 2.a); garantir a boa execução e a qualidade dos materiais, bem como o cumprimento do projecto (cláusula 4.a); fazer um seguro de vida, por morte ou invalidez cujos beneficiários seriam indicados pela proprietária (cláusula 14.a); obrigar os empreiteiros e sub-empreiteiros a um seguro de obra (cláusula 15.ª)»; 2.3. «Não obstante o exposto, julgou-se possível condenar o Réu a 'ultimar a construção da obra nos termos acordados', e a indemnizar a Autora 'pelos prejuízos que essa omissão efectivamente lhe vier a causar', o que seria - como se decidiu - consequência de 'prestar contas do incumprimento (do mandato)...'; 2.4. «Do probatório resulta que a obra está inacabada, que a Autora já pagou ao Réu até 1999, 14.800.000$00 (resposta aos quesitos 6º e 10º) e foi informada por este que era 'impossível cumprir os prazos estipulados e o orçamento inicial' (alínea C) da especificação) pelo que 'o Réu afirmou ser necessário que a Autora entregasse mais dinheiro' (resposta ao quesito 9º); que a Autora entregou ao ... um orçamento para a obra no valor de 30.600.000$00 (resposta ao quesito 25.º) tendo a obra sido vistoriada por esse Banco 'achando esse valor correcto e adequado e a A. aceitou-o" (resposta ao quesito 28º), que a obra tinha um técnico responsável - o Engº. C - e um empreiteiro responsável - D - (alínea B da especificação) e que aquele Engº. C, em 5/5/1998, considerou a obra concluída, após o que a A., em 6/5/1998 requereu a respectiva licença de utilização que a Câmara lhe passou (respostas aos quesitos 41º e 42º)»; 2.5. «A decisão condensada no douto acórdão sob censura não é aceitável, pois: «a) Tendo o R. agido como mandatário da Autora ao celebrar contratos de empreitada, por conta e em nome da Autora, parece claro que esses contratos de empreitada eram celebrados entre a A. (representada pelo R.) e os empreiteiros com quem o R., mandatário da A., contratava»; «b) O Réu - que se obrigou a, em nome da A., fiscalizar a obra, garantir a sua execução e obrigar os empreiteiros e sub-empreiteiros a fazerem seguro de obra, em suma, a dirigir os trabalhos - jamais pode ser condenado a cumprir as obrigações assumidas por quem perante ele contratou, mas vinculando-se à A., porque ele não era sujeito dos contratos»; «Sem prescindir, «c) Tendo-se provado que a Autora 'concluída a obra' (resp. ao quesito 41º) no dia 6/5/1998 requereu a licença de utilização que a Câmara lhe passou (resp. ao quesito 42º) isso prova que se a A. aceitou 'a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado e condicionamentos do licenciamento e com o uso previsto no alvará de licença de construção' (artº. 26º do Decreto-Lei nº. 445/91 de 20/11), 'facta concludentia' de onde necessariamente resulta que a obra foi aceite sem qualquer reserva (cfr. o artº. 1219º do Código Civil e o Ac. Rel. Lisboa de 13/3/97 in BMJ 465, 626)»; «d) Por último, tendo a A. (através do R.) contratado para a obra um técnico responsável, e um empreiteiro responsável só a estes a A. podia pedir contas pela inexecução da empreitada, já que a responsabilidade do R. só podia decorrer do eventual (mau) critério que ele usasse para seleccionar essas pessoas ou da sua eventual incúria em fiscalizar os seus trabalhos, uma vez que é inerente ao mandato a 'inserção directa, e imediata do acto na esfera jurídica do representado' (Ac. Rel. Porto de 30/3/1992 in Col. Jurisp. 1992, 2º, 223)». O recorrente aduz a finalizar que o acórdão sub iudicio violou, assim, os artigos 1157º, 1161º, 1178º, 1207º, 1219º, 799º, 802º do Código Civil. IIIDe harmonia com o exposto, coligidos os indispensáveis elementos de apreciação, cumpre decidir. 1. A controvérsia principal que polarizou intervenções ao longo do processo até ao último grau de recurso centrou-se na natureza do contrato que integra a causa de pedir da acção. Sabemos que a autora o classificou como empreitada, optando as instâncias pela qualificação de mandato, com as especificidades da aproximação aos contornos do mandato sem representação ensaiada pela Relação. O réu recorrente, por seu lado, não é desta caracterização que propriamente dissente, mas das consequências que na óptica da 2.ª instância lhe vão implicadas, considerando-se em resumo irresponsável pelo incumprimento do contrato qualquer que seja a qualificação. Quid iuris? 2. Não estando o tribunal sujeito às construções jurídicas das partes, adiante-se desde já que propendemos para a qualificação perfilhada na petição inicial. Evidentemente que a natureza jurídica do negócio sub iudicio depende da valoração do seu conteúdo à luz do direito aplicável. Interessará por isso conhecer desde já o quadro normativo em que se inscreve o clausulado contratual a examinar dentro em pouco. 2.1. Segundo a definição do artigo 1207º do Código Civil, a empreitada é o contrato pelo qual «uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço». Trata-se, pois, de um contrato bilateral, posto que dele emergem justamente obrigações para ambas as partes, a saber: a obrigação de realizar a obra contratada, impendendo sobre o contraente que a lei designa como «empreiteiro» (2); e a obrigação de pagar o preço convencionado, que incumbe à contraparte, legalmente...

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