Acórdão nº 03B3634 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Dezembro de 2003

Magistrado ResponsávelLUCAS COELHO
Data da Resolução11 de Dezembro de 2003
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal da Justiça: I"A - Indústria Hoteleira de Turismo, Lda.", com sede em ...., instaurou, em 24 de Maio de 1992, na actual 11.ª Vara Cível de Lisboa, contra o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, como sucessor do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN), com sede nesta cidade, acção ordinária visando o cumprimento - conforme contrato entre ambas as partes celebrado - de obrigações pecuniárias do réu, no valor global de 31 154 351$50, em contrapartida das correlativas prestações de alojamento e alimentação efectuadas pela autora, entre finais dos anos 70 e meados da década de 80, a favor de 19 famílias regressadas dos antigos territórios portugueses ultramarinos tornados independentes. Além da condenação do réu no pagamento da aludida importância, pede a autora os juros de mora, vencidos no montante de 40 000 000$00 - 71 154 351$00, na totalidade - e vincendos até integral pagamento. Recusando ademais solver as aludidas retribuições, conquanto reiteradamente instado nesse sentido, o réu forçou a autora a recorrer ao crédito para honrar compromissos, prejudicando o seu bom nome e sobrevivência como sociedade comercial, com o que lhe causou prejuízos nos termos do artigo 483.º do Código Civil. Nesta base formula a autora em último lugar o respectivo pedido de indemnização, consoante o que se liquidar em execução. Na contestação foi excepcionada a prescrição, que procedeu no saneador em parte, com a absolvição do réu dos juros vencidos antes de 25 de Março de 1987, vindo a sentença final, de 12 de Outubro de 2001, a julgar a acção parcialmente procedente, condenando o réu a satisfazer à autora 2 788 975$00 e os juros moratórios à taxa legal desde aquela data, mas absolvendo-o do pedido de indemnização formulado ao abrigo do artigo 483.º do Código Civil. Apelou a autora, sem sucesso, posto que a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Do acórdão neste sentido proferido, em 18 de Abril de 2002, traz ante o Supremo Tribunal a presente revista, cujo objecto, considerando as conclusões da alegação e os fundamentos aduzidos na decisão sob recurso, se resume à questão de saber se o contrato que integra a causa petendi, foi celebrado a favor das famílias beneficiárias das prestações, por modo que a eficácia da sua revogação pelo réu ficasse dependente do assentimento delas.II1. A Relação, julgando improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida na apelação, considerou consequentemente provados os factos já assentes na 1.ª instância, que ora se dão como reproduzidos nos termos do n.º 6 do artigo 713.º, por remissão do artigo 726.º, do Código de Processo Civil, sem prejuízo das alusões pertinentes. E neste sentido se considera desde já aconselhar a inteligência da decisão solicitada ao Supremo Tribunal de Justiça um rápido esboço da situação que os autos lhe apresentam. 2. O processo de descolonização que se desenvolveu em 1974/75 gerou o afluxo a Portugal de pessoas e famílias oriundas dos antigos territórios portugueses em África, fazendo surgir a necessidade de apoiar a sua «integração na vida nacional», mediante «um serviço dotado de meios humanos e materiais adequados», estruturado, com esse objectivo, de forma a poder desempenhar uma actividade dinâmica, eficiente e directa». Foi assim criado na Presidência do Conselho de Ministros, pelo Decreto-Lei n.º 169/75, de 31 de Março - cujo preâmbulo acaba de se citar -, com personalidade jurídica de direito público, o denominado IARN. Entre as suas atribuições de carácter assistencial figurava a de «promover, directamente ou em colaboração com as diversas entidades públicas ou privadas, o apoio, a orientação e a prestação de auxílio aos desalojados das ex-colónias e respectivas famílias, de harmonia com a sua situação de carência, bem como a sua inserção nos esquemas de segurança social». E uma Resolução do Conselho de Ministros, de 5 de Maio de 1976, «Diário da República», I Série, de 2 de Julho de 1976 (Suplemento), veio prever, entre as modalidades de assistência e apoio, concretamente, «o alojamento e alimentação concedidos a título provisório em unidades hoteleiras e similares», «àqueles que não tenham possibilidades de modo algum de recorrer a habitação própria, de familiares ou amigos». Neste conspecto, em resposta a um anúncio publicitado pelo Governo, a autora propôs ao IARN o acolhimento de pessoas e famílias que necessitassem de alojamento e alimentação, em imóveis que tinha disponíveis. Aprovadas pelo IARN as instalações, acordaram autora e réu em 1977 que a primeira receberia e proporcionaria alojamento e alimentação às famílias portadoras de um termo de responsabilidade ou credencial emitida pelo segundo, conforme a qual este assumia a obrigação de pagar à autora as somas pecuniárias previamente acertadas em retribuição dos aludidos serviços. Em tais condições se desenvolveu normalmente a execução do contrato, com respeito a centenas de famílias, até Agosto de 1978. A partir desta altura, o IARN veio a comunicar em diferentes momentos à autora, e a 18 das 19 famílias junto dela credenciadas, a cessação do alojamento nas instalações daquela e da responsabilidade pelo respectivo pagamento a cargo do IARN a partir de determinadas datas. Não obstante, a autora continuou a prestar o alojamento às 19 famílias a partir dessas datas até 31 de Outubro de 1986, tendo apresentado as respectiva facturas ao réu, que recusou pagá-las, devolvendo-as à autora. O montante global destas facturas constitui justamente o pedido de capital formulado na presente acção. Entretanto, na sequência da Resolução do Conselho de Ministros, de 5 de Maio de 1976, citada há momento, e do carácter provisório da assistência aos retornados nela sublinhado, outros instrumentos governamentais proclamavam a excepcionalidade desse regime, introduzindo-lhe sucessivas restrições. É o caso da Resolução de 18 de Novembro de 1976, «Diário da República», I Série, de 6 de Dezembro de 1976, citada na sentença, na sequência da qual, como a autora soube, o IARN «procedeu à desocupação dos hotéis de 5, 4 e 3 estrelas, extinguindo os efeitos dos termos de responsabilidade relativamente a pessoas ou agregados familiares com rendimentos próprios iguais ou superiores a 2 000$00 mensais por cabeça». E da Resolução n.º 225-A/77, «Diário da República», I Série, de 16 de Setembro de 1977 (Suplemento), também referenciada na mesma decisão, «que veio efectivar a cessação do alojamento por conta do Estado em 30 de Setembro de 1977, ressalvando-se situações de deficientes, incapazes, órfãos sem família, menores desacompanhados, viúvas separadas e mães solteiras com filhos menores a seu cargo», sabendo, aliás, a autora «que o IARN procedeu de acordo com os termos daquela Resolução». Até que o próprio IARN foi extinto pelo Decreto-Lei n.º 97/81, de 2 de Maio, «por estarem preenchidos, no essencial, os objectivos que tinham norteado a sua acção» - lê-se na nota preambular do Decreto-Lei n.º 302/83, de 26 de Junho, mercê do qual as obrigações contratuais do IARN passaram para o réu. 3. Com base na factualidade provada, a 11.ª Vara Cível qualificou o contrato como de prestação de serviço (artigo 1154.º do Código Civil), sujeito às regras do mandato (artigo 1156.º), considerando que as comunicações do IARN «no sentido de cancelar a hospedagem» dos acolhidos «foram válidas e eficazes no contexto previsto pelo artigo 1170.º», tanto mais «que os alojados são 'extranei', face à relação jurídica bipolar, a que, tão-só, se vincularam a autora e o réu». Nesta ordem de ideias, julgou a acção parcialmente procedente apenas quanto ao alojamento da família B, entre 10 de Julho de 1978 e 31 de Outubro de 1986, a única, das 19 famílias alojadas pela autora a que respeita a presente acção, relativamente à qual «o réu nunca comunicou o cancelamento da hospedagem». Condenou-se, por conseguinte, o réu a pagar à autora a importância de 2 788 975$00 relativa ao aludido alojamento, com juros de mora às taxas legais desde 25 de Março de 1987, aspecto este que jamais...

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