Acórdão nº 05B2742 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Janeiro de 2006

Magistrado ResponsávelARAÚJO BARROS
Data da Resolução26 de Janeiro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça: "A" intentou, no Tribunal da comarca de Coimbra, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra B e mulher C, peticionando a condenação destes a: - reconhecerem que é dona e legítima possuidora do prédio misto composto por um edifício de rés-do-chão destinado a indústria de produtos cerâmicos, com anexo e terreno de eucaliptos, mato e pousio, com a área de 24.150 m2, sito no Lugar dos ..., inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de Taveiro sob os artigos 798º e 919º; - reconhecerem que o prédio deles, composto por terra de semeadura, com oliveiras, pinhal e mato, inscrito na matriz predial da freguesia de Taveiro, sob o artigo 920º, confinante com aquele prédio dos autores, se encontra onerado a favor desse prédio com uma servidão de passagem de pé e carro, camiões e demais veículos; - reconhecerem que tal servidão vem sendo por si utilizada por sinais visíveis e permanentes; - reconhecerem o seu direito à água extraída de um furo artesiano e que o seu prédio é serviente do dos autores no dever de suportar o depósito, canalização e condução de água e fios de electricidade e permanência da cabina ou posto de seccionamento; - a absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam o acesso à unidade fabril, à utilização do portão eléctrico e da portaria e ao fornecimento de água e energia eléctrica.

Fundamentam o seu pedido na existência de um direito de servidão de passagem, de condução de água e de electricidade através do prédio dos réus, servidões essas constituídas por destinação de pai da família aquando da aquisição daqueles prédios ou, quando assim se não entenda, por usucapião, e no facto dos réus se oporem ao exercício desse direito, o que a acontecer, quanto ao não fornecimento de energia eléctrica e de água à unidade fabril, determinarão a sua paralisação.

Contestaram os réus, excepcionando com o caso julgado, por a questão ter sido objecto de discussão em acção ordinária cuja decisão final já transitou em julgado, e sustentando ainda que o prédio da requerente tem vários acessos para as vias e caminhos públicos, não necessitando de qualquer servidão.

Deduziram reconvenção, para o caso da acção proceder, em que pedem a extinção das servidões por desnecessidade.

Na réplica pugnou a autora pela improcedência da excepção de caso julgado e da reconvenção.

Exarado despacho saneador, nele foi julgada improcedente a excepção do caso julgado, com o que os réus se não conformaram, agravando desse despacho.

Condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo depois a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou os réus a reconhecer que: a) a autora é dona e legítima possuidora do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial; b) o seu prédio se encontra onerado a favor do prédio referido em a) com uma servidão de passagem de pé e carro, camiões e demais veículos; c) a autora tem direito a aceder à água extraída do furo artesiano através do depósito e canalização de condução de água e à electricidade através dos fios de electricidade e permanência da cabina ou posto de seccionamento implantado no seu prédio; d) a abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam o acesso à unidade fabril e ao fornecimento de água e energia eléctrica (no mais os absolvendo do pedido).

Inconformados apelaram os réus.

Na sequência, conhecendo de ambos os recursos interpostos, o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 15 de Março de 2005, decidiu negar provimento, quer ao recurso de agravo, quer ao recurso de apelação interpostos pelos réus, confirmando as decisões recorridas.

Interpuseram, então, os réus recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro que julgue improcedentes os pedidos da autora/recorrida.

Em contra-alegações defendeu a recorrida a bondade do julgado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações do recurso formularam os recorrentes as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil): 1. Para aferir da procedência ou não da excepção do caso julgado na presente acção há que ponderar sempre a realidade concreta que esteve subjacente e determinou a causa de pedir e o pedido na acção primitiva - o processo 15/97 - compaginando-a com as relações materiais concretas que subjazem à causa de pedir e ao pedido desta acção.

  1. Na primitiva acção tal como na actual o que sempre esteve em causa foi a legitimação ou não do exercício dos poderes de facto sobre o prédio por parte da aqui recorrida e que se traduzem no gozo das utilidades que o mesmo pode propiciar, seja a totalidade delas (e daí o recurso à cobertura do direito de gozo mais expansivo e pleno, o direito de propriedade) seja apenas algumas delas como as que são identificadas na presente acção (e para cuja legitimidade se pode recorrer a um direito real de gozo menor no caso o direito de servidão predial).

  2. Os direitos reais de gozo das utilidades que a coisa sobre que versam pode propiciar têm como paradigma e modelo o direito real de propriedade o qual, na sua elasticidade e expansividade, compreende no seu seio todos os demais direitos reais menores.

  3. Daí que quando se alega ou discute um direito de propriedade plena sobre uma coisa também estão subjacentes na integridade compreensiva de todas as suas utilidades, os direitos reais menores de gozo que o compõem e integram mas que, na sua relatividade, apenas versam sobre algumas daquelas utilidades.

  4. As onerações em que se traduzem os jura in re aliena são limitações que têm de ser entendidas no interior do círculo concêntrico de todas as utilidades propiciadas pela coisa.

  5. Daí que as restrições a que se refere a parte final do art. 1305° do CC não tenham propriamente a ver com essas onerações mas com limitações exteriores, de índole pública ou privada, ao poder absoluto conferido pelo direito de propriedade.

  6. No caso em apreço e pelas razões aduzidas estamos perante a discussão de uma questão que já foi deduzida no Proc. 15/97 e nele foi julgada por decisão de mérito já transitada em julgado.

  7. Dada a extensão máxima de possibilidades de gozo reconhecidas aos proprietários é uma impossibilidade logico-jurídica admitir a subsistência de direitos reais de gozo limitados sobre a mesma coisa por parte de terceiros, como seriam as servidões peticionadas nesta acção.

  8. Isto mesmo foi cristalinamente sublinhado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que pôs fim à providência cautelar promovida pela aqui recorrida e que se encontra apensa aos presentes autos.

  9. Não obstante e mesmo sem conceder, para se apresentar com uma postura deliberada de subversão da lógica do caso julgado, a sentença da 1ª Instância e o acórdão a quo sempre teriam de reportar-se a valores e princípios que justificassem erigir os interesses do prédio da recorrida como absolutos e imperativos, o que as instâncias reconhecem não ser o caso, escudando-se na lógica formal da destinação de pai de família para fundamentar a subsistência das servidões peticionadas.

  10. Colocando as questões neste plano e apenas por interesse académico sempre se dirá que é muito arriscado presumir acordos expressos ou tácitos em transmissões forçadas de direitos reais sobre bens, as quais não podem ser qualificadas sem mais de (puras) aquisições derivadas, uma vez que contêm em si elementos de aquisição originária que não devem ser menosprezados e que nos remetem possivelmente para um terceiro género de formas de aquisição.

  11. Esta forma peculiar de transmissão dificilmente permite sustentar servidões desnecessárias radicadas em vontades presumidas.

  12. Como quer que seja o absurdo do reconhecimento das servidões na presente acção - a sua existência, extensão e composição - para além de não lograr ultrapassar a invocação do caso julgado, sempre seria travado pela nulidade da sentença da 1ª instância e na sua cola do acórdão a quo traduzida na oposição entre os fundamentos (o facto dado por provado no ponto 21) e a decisão final, nulidade que vai prevista na alínea c) do n° 1 do art. 668° do C. Proc. Civil.

Encontra-se assente a seguinte matéria de facto: i) - a autora é dona e possuidora do prédio misto composto por um edifício de rés-do-chão destinado a indústria de produtos cerâmicos, com anexo e terreno de eucaliptos, mato e pousio, com a área de 24.150 m2, sito no lugar dos ..., inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de Taveiro sob os arts. 798° e 919°, respectivamente urbano e rústico; este prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o n° 1537/Taveiro, antiga descrição em livro n° 55.233, Livro n° B-141 (doc. de fls. 13 a 15 da providência cautelar); ii) - tal prédio identificado encontra-se inscrito naquela Conservatória a favor da autora através da inscrição G-19951215013 (documento de fls. 13 a 15 da providência cautelar); iii) - por contrato de 2 de Janeiro de 1996, a autora cedeu a exploração da unidade industrial implantada no prédio aludido à E, cedência que ocorreu até Janeiro de 1997 (doc. fls. 25 e 26 da providência cautelar); iv) - a partir de Janeiro de 1997, a autora assumiu a exploração da referida unidade industrial, ali passando a desenvolver a sua actividade social, produzindo e vendendo ladrilhos cerâmicos; v) - os réus são donos e possuidores dum prédio rústico confinante com o imóvel da autora e que é composto por terra de semeadura, com oliveiras, pinhal e mato, inscrito na matriz predial da freguesia de Taveiro sob o art. 920º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n° 751 (doc. fls. 27 a 32 da providência cautelar); vi) - os prédios acima referidos foram, respectivamente, adquiridos pela autora e pelos réus, através de arrematação, no dia 5 de...

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