Acórdão nº 0210993 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 29 de Janeiro de 2003

Magistrado ResponsávelMARQUES SALGUEIRO
Data da Resolução29 de Janeiro de 2003
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam na Relação do Porto: Na comarca de....., o Mº Pº requereu o julgamento, em processo comum e por Tribunal Colectivo, do arguido JOÃO..... (e de Outro, tendo, porém, posteriormente sido ordenada a organização separada de processos para cada um - fls. 281), imputando a cada um deles a prática, em autoria singular, de um crime de tráfico de substância estupefaciente agravado, p. e p. pelos artº 21º, nº 1, e 24º, al. b) e c), do Dec.Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

Notificado da acusação, o arguido João..... requereu a abertura da instrução, insurgindo-se, além do mais, contra as diligências de busca que, no decurso do inquérito e antecedendo a detenção do requerente, foi efectuada na sua residência (e de sua mãe) por elementos da Polícia Judiciária e de revista a que também foi sujeito, diligências cuja nulidade depois arguiu (maxime no seu requerimento de fls. 515 e segs.).

E, realizada a instrução, veio a ser proferida decisão instrutória (fls. 535 a 543) que, após apreciar e indeferir a arguição das ditas nulidades e, bem assim, de outras irregularidades e questões prévias também suscitadas pelo arguido ao longo da instrução, pronunciou o arguido nos termos precisos da acusação do Mº Pº.

Deste despacho, na parte em que considerou inexistirem nulidades, excepções ou quaisquer questões prévias impeditivas do conhecimento do mérito da causa, interpôs então o arguido recurso, cuja motivação (fls. 547 a 566) finalizou com estas conclusões: 1. A busca domiciliária que efectuaram os senhores inspectores na residência do arguido e de sua mãe deveria ter sido precedida dos competentes mandados ou do consentimento do arguido e de sua mãe, estando plenamente comprovado nos autos que, pelo menos esta, não prestou consentimento algum.

  1. A validade de busca domiciliária em residência cuja titularidade é pluralmente encabeçada depende de prévia emissão de competente mandado ou de consentimento evidenciado nos autos como tendo sido prestado pela totalidade dos respectivos co-titulares.

  2. A falta de consentimento de um dos titulares do domicílio equivale à sua oposição expressa, pois exige a lei seja positivamente prestado e isso mesmo resulte evidente nos autos.

  3. Terem decorrido as operações materiais da busca em questão, principalmente no quarto do arguido, não descaracteriza ontologicamente a busca como busca domiciliária a residência comum pluralmente titulada.

  4. O compartimento aqui em causa é desprovido de qualquer autonomia especial, física ou jurídica, que o distinga ou singularize no conjunto da habitação em que se insere - e neste mesmo sentido "falam" os autos, as regas da experiência comum, do processo e dos ónus de prova e descoberta da verdade material.

  5. O arguido não foi o único "visado" pela diligência, na medida em que não podia esta deixar de visar à partida, como visou, todos os sujeitos (arguido e sua mãe), cuja esfera jurídica privada e cuja reserva constitucional, criminal e processual penal puderam ser e foram atingidas com a sua realização.

  6. A privacidade, penal, civil e constitucionalmente garantida, da mãe do arguido foi posta em causa na exacta medida em que foi efectuada uma busca sem mandado no seu domicílio, sem que tivesse prestado ou podido prestar o seu consentimento (que sequer lhe foi pedido) - n° 6 (por certo, o nº 8) do artº 32° da Constituição da República -, pelo que as provas dela resultantes contra o arguido (objectos apreendidos) são nulas.

  7. Visados nas buscas domiciliárias não são apenas aqueles em relação aos quais possua o investigador expectativas de incriminação ou em relação aos quais existam suspeições declaradas (a posteriori); são sempre também todos os que detenham a disponibilidade do espaço sobre que incidam as mesmas.

  8. Ter sido a mãe do arguido impedida da possibilidade de prestar ou recusar o seu consentimento é facto ofensivo da sua integridade moral, meio enganoso e absolutamente perturbador da sua capacidade concreta de avaliação e denegação de benefício legalmente previsto (a faculdade de prestar ou recusar consentimento).

  9. Face ao disposto no n° 2, no n° 3 e na al. b) do n° 4 do artº 174° do C. P. Penal, a busca aqui em causa é, nos termos dos artº 118°, 125° e 122° do mesmo diploma, inadmissível, proibida e nula, decaindo as provas dela resultantes.

  10. Face ao disposto no n° 2 do artº 177°, nas al. a), b) e d) do n° 2 e no n° 3 do artº 126° e 122° do mesmo diploma, as provas obtidas na sequência da busca domiciliária em apreço padece de nulidade (própria) tempestivamente arguida, "não podendo ser utilizadas", -invalidados ficando os actos que dela (busca) dependeram e aquelas (provas) puderam afectar; o artº 32° da CRP, designadamente, confere especial força a este regime sucintamente enunciado, de raiz eminentemente constitucional.

  11. Ninguém pode ser incriminado por provas obtidas com sacrifício, por falta de mandado ou consentimento, do direito à inviolabilidade do domicílio próprio, à inviolabilidade do domicílio de terceiro ou à inviolabilidade de domicílio de cuja titularidade plural também participe. Assim o determina o ordenamento criminal e processual penal, constitucional e ordinário, nacional e internacionalmente estabelecido.

  12. Na actividade de apurar e julgar a conduta de um concreto homem se novela e desvela, no plano ético, a mais grave das funções estaduais, carecendo o direito (dever) de perseguição criminal, abstractamente disposto com limites, de legitimação a substanciar no rigor processual dos autos; ou fica em crise o próprio Estado como ser de Direito.

  13. O Estado Administrador da Justiça assegura, em concreto, o direito (dever) constitucionalmente plasmado de julgar, actuando de modo conforme às limitações que se impôs; de contrário, esse direito decai, "caduca", transformando-se o correspectivo dever no preciso oposto, ou seja, na obrigação de não o fazer.

  14. "Por opção do legislador, a perseguição do criminoso e a descoberta do crime, por mais grave que ele seja, não bastam para abrir as portas do processo às (...) proibições de prova enunciadas sob a rubrica dos métodos proibidos de prova" (Manuel da Costa Andrade).

  15. Não se mostram "precludidas" nem "prejudicadas", ao contrário do que julgou o despacho recorrido, as "nulidades que inquinariam os actos subsequentes, nomeadamente a detenção do arguido em flagrante delito e a revista pessoal que após esta lhe foi levada a cabo e da qual resultou a apreensão dos objectos e produtos examinados e descritos no auto de fls. 51", pelo que devem ser tais nulidades declaradas, a fim de que produzam plenamente os seus efeitos.

  16. A fundamentação fáctica que sustenta o despacho recorrido em matéria de relevância da falta de consentimento prestado pela mãe do arguido para realização da busca aqui em causa, é insuficiente e precária por inadequada apreciação da prova existente nos autos, que deveria ter sido valorada no sentido da sagração daquela relevância.

  17. Padecem os autos de irregularidades, contradições, inverosimilhanças e falsidades que, por um lado, os desacreditam e, por outro, sustentam a versão do arguido a respeito do modo como foi obtida a documentação do consentimento da busca (que nega).

  18. A validade do consentimento aqui em causa e as fiabilidade e fidelidade da sua documentação abrem-se às maiores dúvidas, pelo que deve ser chamado a decidir nessa matéria o princípio in dubio pro reo.

  19. A revista pessoal ao arguido, a que este não deu o seu consentimento e feita já fora de flagrante delito, deve ser declarada nula, porque proibida, inadmissível, contrária à dignidade pessoal do arguido, porque não consentida e livre, subsidiária de coacção e ofensiva da sua integridade moral - n° 6 do artº 32° da CRP.

  20. É assim também face ao disposto no n° l, no n° 3 e na al. b) do n° 4 do artº 174° do CPP e nos termos dos artº 118°, 125°, 126° e 122° do mesmo diploma, uma vez devidamente conjugados, decaindo, por isso, as provas dela resultantes.

  21. Toda a prova de posse de heroína pelo arguido e toda a indiciação de tráfico resultante das demais apreensões é consequente à realização da busca domiciliária efectuada na sua residência e de sua mãe, nela se funda igualmente o flagrante delito que levou à sua detenção, pelo que, invalidada esta busca, é toda aquela prova que decai.

  22. A respeito da nulidade da revista, tempestivamente suscitada, não se pronunciou o despacho recorrido que, portanto, decidiu com total falta de fundamentação.

  23. O respectivo auto da revista em apreço não está assinado pelo arguido, nem nele é referido que o mesmo se tenha recusado a fazê-lo, como deveria face à regras processuais pertinentes (artº 95°, 99° e 100° do CPP, designadamente), tendo o arguido alegado factos e requerido diligência (indeferida) que pôs em causa o rigor ou a verdade do mesmo.

  24. Quanto a esta questão de fundo, respeitante à validade do documento cuja fidelidade foi oportunamente posta em causa, não houve qualquer decisão jurisdicional.

  25. Sobre a questão da falsidade do doc. de fls. 44, suscitada no requerimento do arguido apresentado no debate instrutório, não se pronunciou o despacho recorrido.

  26. A pretensão fundamentada no artº 36° desse mesmo requerimento não obteve também qualquer decisão jurisdicional.

  27. Estes factos (omissivos) constituem denegações de justiça e de direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados.

  28. Procedendo, como o espera o recorrente, a arguição de qualquer das grandes nulidades suscitadas (busca, revista), deverá o arguido ser despronunciado.

    Termina, pedindo seja declarada a nulidade da busca, da revista e das provas delas resultantes e, bem assim, as demais irregularidades de conhecimento oficioso ou tempestivamente suscitadas.

    Admitido o recurso para subir a final com o que viesse a ser interposto da decisão que pusesse termo à causa, respondeu o Mº Pº, rebatendo a argumentação do recorrente e concluindo pelo não provimento do recurso.

    // Prosseguiram os autos com designação de data para a audiência de julgamento, o arguido apresentou...

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